“O meu intuito é arrancar um mísero sorriso”
Conhecido em Lajeado como Dinho Malabaris, o porto-alegrense Daijanelz Sanchez faz um resumo de uma vida de sobrevivência nas sinaleiras do país
Descendente de sírios e espanhóis, Daijanelz Sanchez, 45, nasceu em Porto Alegre, contou moedas para percorrer o Brasil de cidade a cidade e se estabeleceu em Lajeado, para ser chamado de Dinho Malabaris. Aos poucos, devido às pernas que começam a acusar o cansaço de uma trajetória cheia de desafios, ele abandona a arte de sinaleira que construiu sua personalidade.
O Agora no Vale marcou conversa com ele para a tarde desta quinta-feira, em seu local preferido para trabalhar por “não bater sol na cara”. Ele veio acompanhada da cadelinha Preta, que o esperou na calçada. A rotina, como se refere à execução das técnicas, levou apenas o tempo suficiente para as fotos e para que ele juntasse uma pequena quantidade de dinheiro. Estaria sem nada até sábado, quando recebe do seu trabalho de panfletagem, das 5h ao meio dia. Muitos que passaram pelo local o cumprimentaram. “Eu respeitei Lajeado e por isso sou respeitado”, diz.
Dinho conta fatos resumidos da sua vida. “Se falar tudo dá três livros”, brinca. “Foi muito perrengue, muita alegria”. Sem entrar em detalhes, diz que sonhou em cursar História. “Assim eu morreria feliz”, relata. “E feliz é uma palavra que nunca uso. Eu digo alegre”.
Entrevista
Agora no Vale – Como foram as experiências com tantos anos na estrada, com liberdade mas sem segurança?
Dinho – Em São Paulo dormi na Cracolândia por não ter lugar onde dormir. Não sabia que tinha abrigo. Apanhei de Skinheads na frente do Masp. Fui roubado mais de uma vez. Tinha pouco e me roubavam, muitas vezes. Nordeste também. É um lugar para quem tem dinheiro, não para quem precisa dormir na rua. Foi muito perrengue, mas também muita alegria. Conhecer pessoas novas, lugares novos, comidas novas, praias paradisíacas, como Ponta Negra no Natal.
Dormi muito tempo na rua, não só em Lajeado, mas em todas cidades que passei pelo Brasil. O que posso dizer? Sobrevivente. Não tem manta, se cobre com papelão. Se tá chovendo, vai de baixo da marquise. Se não tem o que comer, vai para a finaleira do restaurante pedir. Se não dá ali, vai para outro.
Fui militar da aeronáutica de infantaria. “O infante se adequa ao terreno”. Ou seja, tá no barro, se esfrega na grama. Tá na chuva, se molha. Você faz o seu terreno.
Agora no Vale – De que forma você iniciou essa vida pelas sinaleiras?
Dinho Malabaris – Era funcionário público, monitor de escola. Perdi meu emprego porque a mãe de um aluno me viu bebendo em um bar nas proximidades. Mas era fora do meu horário. E aí conheci um mestre de malabarismo, o Gilbram Martins, de Cachoeira do Sul, que me ensinou a construir elementos e fazer os primeiros movimentos. Comecei a treinar, fui para cima, e caí na sinaleira. Primeiro em Novo Hamburgo. Depois, pô, não tenho nada a perder, então vamos para cima. Vamos para a BR. Treinei muito, peguei outros elementos, como fogo. Intensifiquei mais com o devil stick (também como bastão chinês) e as bolinhas.
Agora do Vale – E a partir daí percorreu um bom trecho…
Dinho – Viajei muito pelo Brasil, mostrando um pouco da minha arte. Por tudo, menos Amazônia. Aí tu sabe que o troço é perverso, é difícil. Fui trilhando, cidade por cidade, até que cheguei no Nordeste. Fui até Natal. Lá não deu certo e fui para João Pessoa, depois consegui uma passagem para Brasília. Parece até música do Faroeste Caboco (risos). E aí fiquei algumas semanas lá, mas Brasília é horrível de fazer malabares porque tem filas. Imagina 15 esperando a sua vez na sinaleira.
Agora no Vale: E aí juntava dinheiro para outra passagem.
Dinho: Rolou passagem para o Paraná. Tinha opções para Ponta Grossa ou Cascavel, e escolhi Cascavel porque era mais perto de Foz do Iguaçu, pois se quisesse podia atravessar o Paraguai. E vi que Cascavel é pior que Brasília. Peguei aqueles ônibus clandestinos, aqueles que têm galinha, gaiola, gato, cachorro, aqueles ônibus de filme, até a travessia para a Argentina.
Lá eu juntei um dinheiro. Tinha pesos e dólares no bolso. Encontrei uma malabarista que me indicou ir pra Mendoza, onde tem uma escola de circo. Cheguei lá, fiquei três semanas com a gurizada treinando. Pagava 5 pila para dormir numa tenda. Absorvi um monte de conhecimento. Muita técnica boa. Voltei para Uruguaiana. Estou abreviando, porque passei por muita treta. Aí decidi ir para o meio do estado, e cheguei em Santa Cruz do Sul.
Passei ali umas duas ou três semanas até que a polícia complicou porque estava fazendo malabares com fogo na frente da prefeitura. Eu argumentei, falando da lei de incentivo à cultura que permite a arte na rua, e levei um soco na cara. Me quebrou um dente frontal, ainda tenho preto. Na assistência social consegui uma passagem para Lajeado, em 2013.
Agora no Vale – E Lajeado virou sua casa.
Dinho – Respeitei a cidade e conquistei o respeito também, acredito eu que sim. Cheguei sem conhecer a cidade e fui perguntando onde tinha sinaleiras. Na época não tinha concorrência. Só sei que não fui o primeiro porque vi marcado no concreto de uma calçada “alemão 100% malabares”, mas fui um dos primeiros.
Quando cheguei aqui consegui uma grana muito boa porque trabalhava das oito da manhã até as oito da noite. E aí eu dormia no Imperatriz, rapaz! Só que aí começaram a aparecer mais malabaristas, porque Lajeado é uma cidade central do estado, então os caras vêm da Argentina e passam por aqui para o litoral. Alguns queimaram o filme aqui, vieram pela droga, e outros não, pela arte.
E foi até que um dia resolvi parar. Estava começando a ficar velho, com o corpo cansado. Fiquei fazendo duas ou três horas por dia, fazia 50 pila, só para sobrevivência. Até conseguir trabalho. Primeiro num bar e agora com panfletagem. E volta e meia dou um pulo na sinaleira para ver se meus braços comportam.
Agora no Vale – O que mais te motivou, além da sobrevivência, a mostrar sua arte?
Dinho – O cara quando vai para a sinaleira tentar fazer alguém sorrir dentro do carro, já que as pessoas tão estressadas por causa do trabalho, loucas para chegar em casa. O meu intuito é arrancar um mísero sorriso. Se a pessoa estender uma moeda, valeu, mas se a pessoa sorrir valeu de tudo. Mas muitos não reagem assim. Eu ainda sou daqueles malabaristas tradicionais, se ganhar um aplauso valeu o dia. Aqueles 40 segundos com toda a força, com toda a simpatia que pode passar, mas nem todos são assim.
Agora no Vale – Os motoristas te respeitam?
Dinho – Casos de xingamento e de ofensas sempre aconteceram, mas me mantenho comportado como sempre fui. Apresento minha arte, ninguém é obrigado a dar nada. Pessoas dão voluntariamente. Se não quer, agradece, sorri, e sempre foi assim. Chegou a ter gente que desceu no carro para tentar agredir. Mas é porque tem malabares que queima muito o filme. Fica com garrafa de cachaça na sinaleira, ou com drogas. Não se pode fazer isso no palco.
Agora no Vale – De que forma alguns malabares prejudicam os demais?
Dinho – Vou te contar uma coisa. Já chorei fazendo malabares numa sinaleira onde uma criança colocou o corpo para fora do carro, sorriu e aplaudiu. Eu tava pintado de palhaço. E os pais estavam nem aí. Só que quando eu encerrei a rotina e fui passar o chapéu, o pai entregou uma nota de 10 para o guri e abaixou o vidro dele para ele entregar para mim. “Eu quero te dar dinheiro porque tu é muito bom”.
Olhei para o pai dele, estava com cara de ranço. Quando eu botei o dinheiro no chapéu saí chorando, porque quem curtiu mesmo foi a criança. Por isso acho que os malabaristas toscos que estão deturbando a arte com Velho Barreiro na sinaleira não prezam o que realmente é fazer arte, porque sempre tem criança nos carros.
por Leonardo Heisler
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